Demoro a escrever. As mãos, que ágeis deveriam estraçalhar o teclado mudo, se aquietam numa derrota. É noite, uma noite fresca. A lua talvez brilhe no céu com ou sem nuvens, mas não sei. Nada sei. A vida é um conjunto de não seis.
Vontade louca de recomeçar tudo, partir dum ponto onde a lembrança não guarde com suas armas o território sagrado. Desejo de ser profano. O respeito calado, sinuoso, está enroscado em meus gestos como um cipó de ferro. Os gestos meus guardam a rigidez das articulações dos robôs. O silêncio fere a atmosfera do recinto.
Recosto-me na cadeira. Imagens passam, confusas, a tela do computador é um emaranhado de visões indescritíveis. Sinto vontade de cravar as unhas na carne e deixá-las dormir no sofrimento. São nove horas e o sopro de vida caminha nas ruas quase desertas. A noite não tem segredos mais, acabaram-se as confusões, os enganos. O mundo é um perfeito lodo de imperfeição cheirosa.
A imagem de uma mulher - bela, morena, exasperante imagem de um amor quieto - desenha-se nas cortinas das paredes. Sacudo a cabeça com pesar e a figura some no ar diáfano.
Balanço-me na cadeira meio estragada. O arfar do mundo entra-me pelos ouvidos como o cantar do galo que reina na roça. Vivo na cidade. As desilusões amontoam-se, o perfeito lodo fede com mais força. Onde está a alegria que viçava no sorriso das mulheres, nos olhos das crianças, na alma aspérrima do homem? Sumiu-se na inconsciência, acho. A certeza evade-se de mim com o insiduoso rosquear-se da cobra. Silva na mesa repleta de papéis.
Estico os ossos. Bocejo. Algumas idéias aparecem, rascunhos de contos, fragmentos de livros que provavelmente não verão a luz das prateleiras regurgitantes de best-sellers. Nem ao menos a poeira do sucesso ou da publicidade roçarão nas capas invisíveis. O machado de Raskólnikov partiu-me o crânio num golpe imaginário. E o sangue goteja em minhas mãos ardentes de resignação.
Fecho os olhos - e já não há o machado. A aridez do deserto da amizade semeia-me um broto de felicidade na alma. Sorrio sem sentir. A ironia desliza pelos meus zigomas e cai salgada no vácuo dos lábios. Expectativa.
Demoro a escrever. A página enche-se devagarinho de letras indecifráveis, períodos medíocres e frases negligentemente coladas num texto-mosaico. Não vale a penas acabá-lo. Não serve para nada. Com boa-vontade, lego-o ao mundo e à sua imperfeição perfeita. Um bafo de vento agita a tranqüilidade das cortinas. O amarelo da lâmpada tremula em indecisão.
E a página imperfeita enche-se perfeitamente de palavras.
VANILDO DANIELSKI
Um comentário:
Olá! Sou o autor deste texto, e preciso dizer-lhe o quanto me satisfez vê-lo aqui publicado. Normalmente as pessoas copiam textos e não colocam o nome do autor: o seu respeito pelos direitos autorais mostrou-me que ainda existem admiradores sinceros e honestos.
Visite-me quando quiser, no blog antigo ou no novo. Aqui estão eles:
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Abraços
Vanildo Selhorst Danielski
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